terça-feira, 6 de julho de 2010

"O insustentável preconceito do Ser"


O insustentável preconceito do Ser
                                                          Rosana Jatobá

Era o admirável mundo novo! Recém-chegada de Salvador, vinha a convite de uma emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter. Solícitos, os colegas da redação paulistana se empenhavam em promover e indicar os melhores programas de lazer e cultura, onde eu abastecia a alma de prazer e o intelecto de novos conhecimentos.



Era o admirável mundo civilizado! Mentes abertas com alto nível de educação formal. No entanto, logo percebi o ruído no discurso:


- Recomendo um passeio pelo nosso "Central Park", disse um repórter. Mas evite ir ao Ibirapuera nos domingos, porque é uma baianada só!


-Então estarei em casa, repliquei ironicamente.


-Ai, desculpa, não quis te ofender. É força de expressão. Tô falando de um tipo de gente.


-A gente que ajudou a construir as ruas e pontes, e a levantar os prédios da capital paulista?


-Sim, quer dizer, não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam alto e fazem "farofa" no parque.


-Desculpe, mas outro dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu a janela do carro e atirou uma caixa de sapatos.


-Não me leve a mal, não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás, adoro a sua terra, seu jeito de falar....


De fato, percebo que não existe a intenção de magoar. São palavras ou expressões que , de tão arraigadas, passam despercebidas, mas carregam o flagelo do preconceito. Preconceito velado, o que é pior, porque não mostra a cara, não se assume como tal. Difícil combater um inimigo disfarçado.


Descobri que no Rio de Janeiro, a pecha recai sobre os "Paraíba", que, aliás, podem ser qualquer nordestino. Com ou sem a "Cabeça chata", outra denominação usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.

Na Bahia, a herança escravocrata até hoje reproduz gestos e palavras que segregam. Já testemunhei pessoas esfregando o dedo indicador no braço, para se referir a um negro, como se a cor do sujeito explicasse uma atitude censurável.

Numa das conversas que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:

-O Brasil gosta de se imaginar como uma democracia racial, mas isso é uma ilusão. Nós temos uma marcha de carnaval, feita há 40 anos, cantada até hoje. E ela é terrível. Os brancos nunca pensam no que estão cantando. A letra diz o seguinte:


"O teu cabelo não nega, mulata


Porque és mulata na cor


Mas como a cor não pega, mulata


Mulata, quero o teu amor".

"É ofensivo", diz Miriam. Como a cor de alguém poderia contaminar, como se fosse doença? E as pessoas nunca percebem.

A expressão "pé na cozinha", para designar a ascendência africana, é a mais comum de todas, e também dita sem o menor constragimento. É o retorno à mentalidade escravocrata, reproduzindo as mazelas da senzala.


O cronista Rubem Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um artigo no qual ressalta:

"Palavras não são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar os fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a palavra 'niger' para humilhar os negros. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho assim:


'Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe'...que quer dizer, agarre um crioulo pelo dedão do pé (aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro, usa-se a palavra crioulo).


Em denúncia a esse uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o slogan 'black is beautiful'. Daí surgiu a linguagem politicamente correta. A regra fundamental dessa linguagem é nunca usar uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém".

Será que na era Obama vão inventar "Pé na Presidência", para se referir aos negros e mulatos americanos de hoje?

A origem social é outro fator que gera comentários tidos como "inofensivos", mas cruéis. A Nação que deveria se orgulhar de sua mobilidade social, é a mesma que o picha o próprio Presidente de torneiro mecânico, semi-analfabeto. Com relação aos empregados domésticos, já cheguei a ouvir:

- A minha "criadagem" não entra pelo elevador social !

E a complacência com relação aos chamamentos, insultos, por vezes humilhantes, dirigidos aos homossexuais ? Os termos bicha, bichona, frutinha, biba, "viado", maricona, boiola e uma infinidade de apelidos, despertam risadas. Quem se importa com o potencial ofensivo?

Mulher é rainha no dia oito de março. Quando se atreve a encarar o trânsito, e desagrada o código masculino, ouve frequentemente:

- Só podia ser mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!


Dependendo do tom do cabelo, demonstrações de desinformação ou falta de inteligência, são imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:


-Só podia ser loira!

Se a forma de administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:


- Só podia ser judeu!

A mesma superficialidade em abordar as características de um povo se aplica aos árabes. Aqui, todos eles viram turcos. Quem acumula quilos extras é motivo de chacota do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega, baleia ...


Gosto muito do provérbio bíblico, legado do Cristianismo: "O mal não é o que entra, mas o que sai da boca do homem".


Invoco também a doutrina da Física Quântica, que confere às palavras o poder de ratificar ou transformar a realidade. São partículas de energia tecendo as teias do comportamento humano.

A liberdade de escolha e a tolerância das diferenças resumem o Princípio da Igualdade, sem o qual nenhuma sociedade pode ser Sustentável.


O preconceito nas entrelinhas é perigoso, porque , em doses homeopáticas, reforça os estigmas e aprofunda os abismos entre os cidadãos. Revela a ignorancia e alimenta o monstro da maldade.

Até que um dia um trabalhador perde o emprego, se torna um alcóolatra, passa a viver nas ruas e amanhece carbonizado:

-Só podia ser mendigo!

No outro dia, o motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111 detentos, e nem a canção do Caetano Veloso é capaz de comover:

-Só podia ser bandido!

Somos nós os responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui em São Paulo, no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo. É a consciência do valor de cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o que temos de melhor para dizer uns aos outros.


 PS: Fui ao Ibirapuera num domingo e encontrei vários conterrâneos...

 
(Rosana Jatobá é jornalista, graduada em Direito e Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, e mestranda em gestão e tecnologias ambientais da Universidade de São Paulo. Também apresenta a Previsão do Tempo no Jornal Nacional, da Rede Globo.)
Esse texto é parte da série de crônicas sobre Sustentabilidade publicada na CBN




...Difícil combater um inimigo disfarçado, né verdade?! É por isso que parecemos loucos, ao lutarmos, nem que seja através do mínimo esforço, por uma sociedade, por um mundo, por uma realidade JUSTA, baseada em respeito e igualdade. Mas, como sermos iguais, sendo tão diferentes? Só o respeito pode conseguir isso.

Engraçado que minha sogra me enviou o e-mail com o texto acima bem quando eu pensava em escrever algo sobre preconceito. Obrigada, Susana, por mais uma colaboração aqui! O que me despertou o desejo de falar sobre o preconceito tão aceito - sim, porque é fácil aceitar o preconceito e suas derivações, difícil é querer ser justo... aí, nós passamos a ser "chatos", "sem senso de humor" e/ou "intolerantes"... Só sendo um negro de pele negra para saber o que é o "repúdio" sem sentido a sua cor. Eu sou afro-descendente e, por mais revoltante que seja me deparar com o preconceito racial, eu não sinto na "minha" pele, porque ela, por uma questão de combinação genética, saiu mais clara... bom, mas, isso não vem ao caso. O preconceito e o ar de superioridade das "potências" econômicas, sim, é o poder econômico que dita as regras e "pinta" as cores a serem aceitas, de preferência, verdes como dólares... Em falando de Brasil, nós aqui do Nordeste somos constantemente discriminados, onde aceitar que existe "inteligência" além eixo sul-sudeste é questão de espanto... Ninguém para para ver a "origem" do "Brasil", este país que moramos e que foi "descoberto" através de práticas desumanas e aceitas, dizimando o povo que aqui existia como se fossem nada.

A cultura do preconceito é tão socialmente aceita que mês passado - junho - aqui no Nordeste tem um dia de feriado no dia 24, para comemorar o São João. Regados a festa, todo o Nordeste entra no clima de festejos, celebrações, reuniões, encontros e muita comida e bebida. É uma espécie de "Natal" ao som de forró, muito bolo de aipim, milho, "quentão", roupas descontraídas, fogueiras e fogos de artifício. O clima é mais alegrinho, mesmo ninguém sabendo muito a história da data e o que estão comemorando... Bom, questões bíblicas a parte, é muita festa por todo o Nordeste. O fato é que o dia 24 é feriado. A empresa que meu marido presta serviço é sediada em São Paulo e lá não é feriado. Logo no dia 02 de julho, comemora-se a "independência" da Bahia, portanto, feriado para os baianos. É sabido que feriados locais e regionais existem em cada Estado, município e cada um tem seu grande motivo: comemorar algum marco histórico ou data bíblica. Não entendo o porquê da piada que ele precisou escutar do colega da sede:

"- Eu queria morar aí na Bahia. É feriado todo dia!"

Quem dera. As pessoas acham que aqui é só carnaval. Mas, para conhecimento, a cidade para, sim, para receber toda essa galera que fala mal e depois vem se encher de "cachaça" e pular atrás dos trios, e, depois, durante o ano, seguem as micaretas e carnavais fora de época, Brasil a fora. Sim, no carnaval, muita gente aqui trabalha. Só é liberado quem está na região do circuito da folia, para a alegria de toda essa galera do mundo ser "bem recebida" e, depois, sair falando mal dos baianos... Quem está fora do circuito - que abrange todo o centro da cidade e adjacências, sendo a cidade enorme - só folga na terça-feira e metade da quarta-feira de cinzas. Fora os que trabalham na festa e durante a festa, fazendo a segurança e muito mais. Mas, baiano bom é aquele que só fala em "axé music", para propagar que a gente só vive de festa. e se fosse verdade? Que mal haveria? Eu já fui foliã, mas, faz mais de 10 anos que não vou a circuito da folia e, nem por isso, vou falar mal. Falo da falta de educação cultural de boa parte - e muito significativa - do meu povo, mas, tem muito mais de estereótipo. Pois sim, em outros Estados não há feriados em seus aniversários, ou datas históricas de lutas e vitórias? Isso precisa ir diminuindo. Cada vez que nos pegarmos propagando um preconceito, por mais banal que nos pareça, ele pode tomar proporções históricas e virar "padrão", bem como fogo em palha... só precisa de uma faísca para espalhar.

Vamos manter acesa a chama e vamos fazer nossa parte no movimento de DEIXAR UM MUNDO MELHOR PARA OS NOSSOS FILHOS E FILHOS MELHORES NESTE MUNDO, inlcuindo a nós mesmos!!!

Vamos refletir e agir, nem que seja aos poucos. Tomando consciência gradativa e dispostos a exercer o papel de "cada um fazendo sua parte".

Beijos,

Pat Lins.

Um comentário:

  1. Pat, amei o texto. Muito abrangente e realmente mostra o preconceito existente ainda no Brasil. Sinto na pele quase que diariamente esse pré conceito (pré julgamento) com relação à cor da minha pele e já sentí tb com relação a minha condição de nordestina (com muito orgulho). Dói no fundo da alma! Posso garantir.
    Bjos amiga!

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